Aqui começa a história de uma fase romântica da música popular brasileira - Vicente Celestino e suas dolorosas canções - Francisco Alves, Orestes Barbosa, Sílvio Caldas - os primeiros donos do carnaval, desde Sinhô, Caninha, Noel Rosa até Haroldo Lôbo - o ambiente do rádio da época do aparecimento de Carmen Miranda.
A Vida Trepidante de Carmen Miranda
Por David Nasser
O ambiente do rádio brasileiro, naquele tempo, mostrava a febril agitação de tudo o que se inicia sem um programa definido. As transmissões radiofônicas constituíam novidade, mesmo nos países mais adiantados, e a era do gramofone completava o seu ciclo, no Brasil. Os discos da Casa Edison, do saudoso Fred Figner, um bom espírita, porém comerciante de visão, andavam esparramados por todo o Brasil - e antes da possante voz de Vicente Celestino, então no apogeu, começar as suas dolorosas mágoas, o prefixo da loja gravadora era pronunciado, gravemente, por um locutor invariàvelmente o mesmo. Outras fábricas existiam no Rio e em São Paulo, a "Parlophon", a "Brunswick" e uma companhia inglêsa estudava o lançamento neste país de discos maleáveis.
Os sucessos musicais pertenciam, numa esmagadora maioria, a Pixinguinha, Eduardo Souto, Cândido das Neves, Sinhô, Ernesto Nazaré, Donga, Tupinambá, Zequinha de Abreu, Caninha e Ismael Silva, sem contar muitos compositores de menor produção ou que estavam aparecendo, para ocuparem depois o absoluto primeiro plano da música popular brasileira. Entre os novos, o incomparável Ari Barroso, Noel Rosa, João de Barro, pseudônimo de Carlos Braga, que até hoje é um dos campeões do carnaval ("Touradas de Madrid", "Pirata da Perna de Pau", "Gato na Tuba", "Chiquita Bacana"), Antônio Nássara, que fazia parte da equipe de Noel e marcou uma fase da música brasileira, Orestes Barbosa, autor de versos de canções até agora inigualáveis na história de nossas gravações ("Palhaço do Luar", "Chão de Estrêlas", "A Mulher Que Ficou Na Taça") com melodias simples e românticas de Francisco Alves e Sílvio Caldas.
Os dois seresteiros máximos do Brasil - Chico e Sílvio - quando Carmen Miranda fêz a sua estréia, já desfrutavam de popularidade absoluta, êsse prestígio entre as massas que dura até hoje, implacàvelmente. (As últimas pesquisas do IBOPE assinalam para Francisco Alves quase a metade dos ouvintes de cantores nacionais, ocupando Sílvio Caldas uma posição de destaque, apesar de afastado durante três anos do rádio brasileiro, ora procurando cristais de rocha em Goiás, ora caçando diamantes em Minas Gerais, ora varando o Norte e o Nordeste, em busca simplesmente de nada). As canções de Vicente Celestino, por sua vez, infiltravam-se nos lares de maneira impressionante. O astro, em seus recitais pelas cidades do interior, arrastava as maiores avalanches de bilheteria que se podia imaginar. Mas, Vicente Celestino, como ainda hoje, era um caso a parte.
Havia uma coincidência fabulosa no passado de Carmen Miranda, a estreante, e Francisco Alves, já então veterano e em plena ascenção: ambos começaram a vida fazendo chapéus. Aliás, Carmen ainda os fazia, em casa, mesmo depois de iniciada a sua carreira radiofônica. Francisco Alves trabalhou na Fábrica "Mangueira", deixando-a ao obter os primeiros êxitos artísticos, no Teatro S. Pedro. Por sua vez, Sílvio Caldas, ajudante de mecânico de automóveis, servira também como cozinheiro de estrada de rodagem, preparando o angu para os operários nos enormes caldeirões. (Muitas vezes, nas casas dos amigos, êsse bom rapaz que é Sílvio Caldas assume o comando das panelas e organiza feijoadas ou peixadas fabulosas.) Agora, que os seus cabelos estão ficando brancos e sua voz melodiosa como nunca, os hábitos de Sílvio não mudaram e seu imenso desprêzo pelas coisas rotineiras da vida de acentua aos poucos. Ganhou milhões de cruzeiros, foi talvez o artista que mais dinheiro teve em suas mãos, mas não guardou um centavo. "Um perdulário", dizem os colegas. Desorganizado em tudo, terror dos diretores artísticos das emissoras pelas suas faltas na hora do programa ser mandado para o ar, espantalho dos diretores de gravação, porque, na hora em que a orquestra pronta o espera, êle não aparece, sem ordem nem método, Sílvio Caldas é apenas certo e positivo em algo: a mensalidade que envia para um asilo de órfãos, desde há muitos anos, invariàvelmente. Onde quer que esteja, no Ceará, no Amazonas ou no Rio Grande do Sul, o dinheiro parte regularmente. Um sujeito, não há a menor dúvida, de bom coração. Há alguns anos, quando se encontrava em Fortaleza, Sílvio Caldas soube que os leprosos de uma colônia situada a algumas horas da capital cearense, não tinham podido ouvi-lo. Parece que o rádio do lazareto deixara de funcionar na hora exata. Sem avisar a ninguém, Sílvio comprou passagem e rumou para a colônia, de violão debaixo do braço. Na portaria, disse simplesmente: "- Sou o Sílvio Caldas e vim cantar."
A estréia de Carmen Miranda no éter se realizou no Rádio Clube do Brasil, a primeira estação radiofônica dêste país a ser mandada para o ar. Felício Mastrangelo servia, então, como mestre de cerimônias. Não havia dinheiro para os artistas novos - porém Carmen se sentia imensamente feliz em poder cantar para um auditório invisível, porém enorme. Já não era mais o salão de festas domésticas.
Certo dia, Francisco Alves estava em casa, de pijama, lendo a descrição de um jôgo do América, seu team, contra o Fluminense. O rádio ligado, entre os ruídos característicos dos primeiros aparelhos, trouxe a voz de Carmen: Francisco Alves dobrou o jornal e pôs-se a ouvir. Mal a cantora terminou o seu programa, Chico procurou o telefone e fêz uma ligação para o estúdio. - Mastrangelo, avise a essa menina que eu vou aí.
Uma hora depois, Francisco Alves dava entrada no estúdio da Rádio Clube do Brasil. Carmen o esperava, nervosa. Nunca falara com um astro daquela projeção e tinha as mãos suadas. - Olhe aqui, moça! - Principiou Chico Alves, com a sua trovejante e poderosa voz de tenor abaritonado. - Você é um espetáculo! Uma coisa louca!
Carmen ficou vermelha com os elogios à queima-roupa. Todo mundo sabia que o Francisco Alves não mentia e se êle vinha de casa para cumprimentá-la, então, realmente apreciara a sua voz. - E além disso - continuou o Chico - você é uma beleza! Um tipo de brasileira 100%.
SENSACIONALÍSSIMA
Os americanos adoram essas fantasias
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