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segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

FRAGMENTOS DE VIDA E FORMAÇÃO IV

Hoje eu refiz minhas viagens revisitando acontecimentos antigos e que muito influenciaram a minha formação como pessoa e como profissional. Que me fizeram vivenciar diferentes formas de ver o mundo, a vida e as pessoas. O aflorar das reminicências se deu quando assistia à defesa de tese de uma amiga muito querida, a Ana Paula Silva da Conceição, cujo tema versa sobre as possibilidades de um "currículo brincante" e fez-me retornar àquele tempo de criança, para constatar como a escola desconsiderava a brincadeira na experiência da aprendizagem. Enquanto Ana Paula fazia a sua apresentação, trazendo a importância do lúdico e do brincar para a formação na Educação Infantil, eu fazia comparações entre as propostas atuais e as experiências dos meus primeiros anos escolares.

A minha escola daquele tempo era muito séria, formal e extremamente colonizadora. As atuais também colonizam, com novos enfoques, mas aquela nos conduzia para a obediência cega, sem contudo impedir o surgimento de comportamentos rebeldes e de posturas tidas como inadequadas. Aquele cotidiano que excluia a ludicidade, aquele currículo desenvolvido apenas como programa de estudos, sem que pudéssemos opinar sobre o que queríamos fazer ou aprender, configurava a sala de aula como um ambiente de tensão constante. Estudar era mais uma obrigação do que um prazer. Quantas vezes eu me perguntava, aflita: por que eu preciso decorar o nome dos acidentes geográficos, das capitais e tantas outras coisas? Para as quais eu não via, naquele momento, uma finalidade na vida prática. Por que sempre me mandam calar a boca quando quero me aprofundar em algum assunto? Por que ninguém explica o que desejo saber?

Por outro lado, nem existia Educação Infantil. Como já relatei no meu primeiro fragmento, entrei na escola com seis anos de idade e já alfabetizada pela minha mãe. As brincadeiras corriam por conta das iniciativas das próprias crianças, ou na hora do recreio ou nos momentos em que não estavam na escola. As cantigas de roda, a picula, o chicotinho queimado, a brincadeira do anel que passava de mão em mão, as adivinhações, o pula corda, o esconde-esconde, a amarelinha... Tudo isto depois de fazer os deveres de casa e também na "boca da noite", como meus pais chamavam as primeiras horas depois que o sol se escondia... Porque, como a cidadezinha era extremamente tranquila, não representava perigo algum para as crianças brincarem na rua, fosse durante o dia ou a noite.

Os pais, depois do jantar, que sempre acontecia por volta das 18 horas, sem luz elétrica, sem TV, ficavam sentados na calçada, conversando, enquanto os filhos brincavam. Também, não tinha movimento de carros nas ruas, todos andavam a pé. Em noites de lua cheia, se não fosse inverno (quando o frio era intenso), a tagarelice dos adultos se estendia até às 21 horas. A cidade toda recolhia-se nos braços de morfeu muito cedo, porque acordava-se também muito cedo, ao raiar do sol, com o canto do galo, o cheiro de terra úmida de orvalho e de café quentinho feito no coador de pano e no bule esmaltado. O leite fresquinho, fervido na hora; o cuscus feito com milho pisado no pilão e cessado na peneira de palha; o pão ainda quentinho saído do forno da padaria; não posso esquecer de citar a abóbora e a batata cozidas e misturadas ao leite; a manteiga de garrafa ou da padaria; o aipim que, como hoje, nem sempre amolecia; faziam parte do cardápio do café da manhã de minha meninice.


Foto atual da minha casa daquela época.
A casa amarela, que naquele tempo não tinha grade e a porta ficava aberta.


Esta é a foto mais antiga que encontrei entre as poucas que minha mãe guarda daquele tempo. Lembro-me ainda do dia em que passou pela minha rua um lambe-lambe, um daqueles fotógrafos que circulavam pelas cidades do interior. As fotos foram tiradas no quintal da nossa casa. Guardo ainda na memória a imagem de minha mãe areando, como se falava na época porque era usada areia fina, talheres para serem usados no almoço. Pena que a foto deste episódio singular se perdeu entre as que foram desbotadas pelo tempo. Nesta ainda podemos ver: Eu, Paulinho e Pequinho. Minha mãe não lembra com exatidão, mas deverímos ter, aproximadamente: Eu cinco anos, Paulinho 3 anos e Pequinho dois anos.

Paulinho gostava muito do peru que era criado no quintal e fez questão de tirar uma foto com ele. Minha mãe criava galinhas e quando estavam gordas e carnudas as matava para o almoço dos domingos. No Natal o costume era matar um peru que passava algum tempo no regime de engorda e levá-lo ao forno de lenha para assar. Por isto acredito que este amigo de Paulinho teve o mesmo fim. Outro costume bem comum era deixar as crianças pequenas (meninos) brincarem nuas. Menos roupa para lavar e passar. Por isto que Pequinho aparece assim nesta foto. Não me lembro, mas ele deve ter feito xixi na roupa com a qual se apresenta na foto anterior.

Até porque lavar roupa naquela época era uma mão de obra! Ensaboava-se, esfregava-se em uma enorme bacia de zinco, estendia-se em um quarador de pedras cuidadosamente arrumado em um local do quintal e molhava-se aquela roupa em pequenos espaços de tempo para que o sol não as queimasse e ficassem bem limpas. Depois eram colocadas novamente na bacia de zinco para enxaguar e estendidas em fios de arame, cuidadosamente armados no quintal, para enxugar. Na minha condição de menina e mais crescidinha, era convidada a ajudar a jogar água na roupa que estava no quarador. Para mim era uma brincadeira a mais, uma festa, por isto fazia com prazer.

Vejam só... quanta coisa, quase esquecida, bem lá no fundo do baú... Casos que vêm à tona quando olhamos pela janela da vida, quando miramos o passado, quando fazemos um retorno aos tempos, momentos e fragmentos de vida e formação. Quanta riqueza de detalhes e de informações recolhemos, a partir de uma associação presente-passado, realidades que nos formam, conformam e nos fazem pessoas. A história de vida, dispositivo de pesquisa utilizado pela minha amiga no seu trabalho sobre um "currículo brincante", fez-me viajar, mais uma vez, para bem distante, para um tempo em que me constituia pessoa, sujeito de minha vida e de minha formação, do jeito da cultura da época, que ajudou e muito contribuiu para meu processo identitário e de todas as pessoas com quem compartilhei aprendizado e vida.

NOTÍCIAS SOBRE O LAMBE-LAMBE:
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