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domingo, 22 de julho de 2012

FRAGMENTO DE VIDA E FORMAÇÃO XIII

Desde a segunda série ginasial (nomenclatura usada pelo sistema de ensino da época), eu já pensava sobre o que queria ser quando crescesse. E tinha muita pressa em crescer. Era uma ansiedade que me fazia sonhar com um futuro promissor e com a independência que me daria poder de decisão sobre mim e sobre minha vida. Eu queria ser livre, ser dona de mim e de minha vida. E isto me dava um tom de rebeldia em tudo que fazia. Protestar era o melhor dos meus desejos. 

A vida regulada pela minha mãe, cronometrada, vigiada... Fazia-me sonhar com a liberdade e cultivar desejos de encontrar alguém que compartilhasse com meus ideais. Empreitada difícil, porque tudo contribuía para me distanciar de meus sonhos. Os professores, com as suas ordens, os seus controles, os seus ensinamentos de obediência, ditavam e ordenavam a minha vida. Os meus e minhas colegas, também muito bem formatados... obedientes... temerosos... O meu pai, compreensivo, complacente, dizia: minha filha, tenha paciência, conforme-se... Vai chegar o dia em que você poderá ser dona de sua vida. Conformar-me significava violentar-me, adequar-me à pequena cidade interiorana, desistir de sair de lá para conquistar outros espaços. Tamanha conformação moldou, conformou, formou uma normalista cheia de sonhos que não se realizaram, motivando a busca de outros caminhos que se revelaram igualmente conformados por outras propostas.

Com a fama de garota rebelde, forjei minha personalidade, me inseri no mundo com insatisfações e desejos reprimidos. Sonhava com uma carreira brilhante cursando medicina, em ser uma cientista. Cursei magistério por imposição materna e, para sobreviver e tentar ser feliz, aprendi a gostar da profissão. Ao descobrir que poderia postargar o sonho para outra vida futura, acomodei meu coração, ainda que contrariada, e busquei ser feliz com o que me fora dado fazer, agora. Percebi que poderia qualificar esse novo caminho com novas esperanças e realizações, sem resignação, mas com perseverança, com determinação.

Hoje sou uma educadora, Pedagoga, com Mestrado e Doutorado em Educação, que continuou seus estudos buscando aprimorar-se em seu mister sem perder a simplicidade e seus valores éticos. Hoje sou feliz com o que faço e com as escolhas que fiz quando fiquei dona de mim e de meus desejos. Continuo a estudar, a aprimorar-me como professora que se formou, forjando-se, conformando-se, refletindo sobre si mesma. Criei meus filhos com dedicação, sem desistir de mim. Por isto considero-me vencedora.

sábado, 19 de maio de 2012

FRAGMENTOS DE VIDA E FORMAÇÃO XII

Hoje, dia 19 de maio de 2012, recebi um e-mail de Jussara, professora da Escola Rui Bacelar em Nova Soure, pedindo informações sobre a Nova Soure antiga. Meus registros são fruto de informações emprestadas das histórias que meu pai contava. Por várias vezes ele atendeu à minha curiosidade, contanto com detalhes como ele se viu frente a frente com o bandido mais temido do sertão: Lampião.

Meu querido pai, homem simples do campo, além do labor em seu pequeno sítio na região de Monte Alegre, prestava serviços na fazenda do Coronel Feliciano, um dos homens mais ricos da região. Um dia, Lampião com o seu bando invade a fazenda e obriga meu pai e os demais empregados a servi-los.

Dizia meu velho pai que a dispensa da fazenda (local onde eram guardados os alimentos) estava bem sortida de carne seca, linguiça feita com carne de porco na tripa de boi seca e bebidas típicas da região. Enquanto os velhos donos da fazenda ficaram recolhidos nos seus aposentos sem nada poder fazer, meu pai se desdobrava para satisfazer os desejos da turba, que bebia e comia sem cerimônias. Lampião mandou vasculhar os aposentos do casal e descobriu que eles tinham grande quantidade de jóias em ouro, prata e pedras preciosas, em um velho baú. Apropriou-se das joias, do dinheiro do casal e de tudo que existia na fazenda que tivesse algum valor. Corisco, o mais temido dos vassalos de Lampião, cismou com meu pai, jurando-o de morte depois de obrigá-lo a servi-lhes um lauto jantar.

Enquanto aqueles homens comiam e bebiam, meu pai conversava com um dos capangas de lampião, que não concordara com a ameaça de Corisco e prometera salvar-lhe a vida. Combinaram que o rapaz distrairia o bando e meu para fugiria pelos fundos da casa, com a desculpa de procurar uma espora para Lampião. Assim foi feito. Meu pai pegou na cozinha um fifó (tipo de utensílio usado para iluminar os cômodos da casa, alimentado com querosene) e saiu sorrateiramente. Ao se encontrar a salvo no quintal da casa, enfiou o fifó numa moita e saiu correndo... Correu... Correu... até chegar em casa, salvando-se da ameaça de Corisco.

Intrigada, perguntei: e os velhos, como ficaram, sozinhos na fazenda com o bando? Meu pai explicou-me que Lampião respeitava as pessoas idosas e nada fazia com elas nem com quem atendia aos seus desejos. Que se desentendia com Corisco, pelo seu caráter violento. E que muitas das histórias de violências praticadas contra crianças eram simplesmente lendas e fruto da imaginação popular. Disse ainda que Lampião era uma figura contraditória, roubava os ricos e ajudava os pobres. E que Maria Bonita lhe deu a impressão de ser uma mulher arrogante e vaidosa.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

FRAGMENTOS DE VIDA E FORMAÇÃO XI

Do último fragmento escrito, uma lembrança carinhosa ficou a perambular em meus pensamentos. O meu avô Benvenuto, homem gentil, bom e simples de quem eu guardei gratas recordações. Natural do Araci e criado em outro pequeno recanto do interior da Bahia, o povoado de Nova Soure, onde nasci em 28 de maio de 1943.

Meu pai chamava Nova Soure de Natuba e dizia que os seus mais antigos antepassados eram descendentes de portugueses que colonizaram a região desde finais do século XVI. Assim se expressa Euclides da Cunha em os Sertões, ao descrever a região onde foram erguidas muitas aldeias que depois se transformaram em pequenas cidades do interior da Bahia: "Natuba, também bastante antiga aldeia, ereta pelos jesuítas".



Atual Praça Nossa Senhora da Conceição de Nova Soure
Fonte: https://picasaweb.google.com/NovaSoureBA/FotosDeRuasEPracasDaCidade2010


Sempre tive facilidades para memorizar e lembrar fatos de minha vida que foram marcantes por algum motivo ou circunstância. Remexendo nos arquivos mais densos e distantes dessas recordações, lembrei-me de detalhes do sítio onde morava meu avô quando eu era bem pequenina. Um lugar singelo, arborizado, com bodes, ovelhas, carneiros, porcos e galinhas a perambular pelos campos marcados ora pela seca ardente do sertão baiano, ora por esparsas chuvas de inverno. Eu tinha menos de três anos de idade, mas a minha memória registrou, além do ambiente natural, alguns elementos da vida cotidiana das pessoas, memórias estas, enriquecidas pelas narrativas de meu pai. Desde a nossa infância, minha e de meus irmãos, meu pai falava de sua vida em Nova Soure e de suas origens portuguesas.


Consigo rever, como num filme que se abre na tela das memórias de minha infância, minha avó Maria Rita, ao pé do fogão de lenha na ampla cozinha de chão batido, fritando a carne seca, cozinhando o feijão suculento e a fatada. Eu, pingo de gente, que pouco tinha o que fazer, a não ser brincar com bonecas de pano e observar o ambiente, guardei imagens da minha avó mexendo o tacho de comida fervente e meu avô, sentado na porta da cozinha que dava para o quintal fumando o seu cigarro de fumo de corda, que ele fazia cuidadosamente; primeiro, cortando o fumo bem miúdo, depois enrolando em papeis recortados para esta finalidade. Eu ficava embevecida olhando as piruetas e silhuetas que a fumaça desenhava no ar, ao ser lançada pelas baforadas do meu avô. Ele sorria e interpretava para minha curiosidade aqueles desenhos de fumaça que se desfaziam com extrema rapidez. Como num ritual, todos os dias, ele se sentava naquele mesmo lugar, para fumar o seu cigarro. Por algumas vezes observei meu pai fazer-lhe companhia e os dois fumavam e conversavam.


Pelas conversas de meu pai e informações de minha mãe, meu avô teve uma fazenda chamada Cajueirinho, que fora vendida em virtude da decisão familiar de morar na cidade de Nova Soure. Entretanto, os velhos, minha avó e meu avô, não se adaptaram na cidade e voltaram a morar no campo, nesse pequeno sítio de meu tio Justino, para onde íamos com frequência visitá-los. Minhas lembranças são, portanto, de pequenos trechos de momentos na casa da cidade, que já mencionei em outro fragmento, e no sítio de tio Justino. Das pequenas terras de meu pai nada consigo lembrar. Segundo ele e minha mãe, foi um lote de terra recebido do Dr. Alfredo Amorim, por ter administrado a venda de outros lotes adquiridos na região pelo então ilustre advogado, que ele conhecera em suas andanças pela Salvador daquela época. Meu pai falava muito sobre uma região chamada Monte Alegre e, a partir de suas narrativas, pude concluir que as suas pequenas terras estariam localizadas nessa região. Meu pai era um livro vivo de histórias regionais, que ele contava e eu ouvia embevecida. Hoje lamento não ter registrado tudo que ele falava e preciso apelar para o que ficou aceso na minha memória sobre essa época de nossas vidas e para algumas lembranças que minha mãe, hoje com 90 anos, ainda guarda, mas sem riqueza de detalhes.


Quando eu estava a completar três anos de idade, em 1946, meu pai e meu tio Justino venderam as pequenas propriedades e a casa da cidade. Meu pai veio para Serrinha com sua pequena família: ele, minha mãe, eu, meu irmão Paulinho e Pequinho ainda em gestação. Meus avós e meu tio Justino ficaram no Araci, onde já moravam a tia Talissa e a tia Pombinha irmãs de meu pai. Em Nova Soure ficaram apenas tia Zinha e os filhos. Meu pai sempre dizia que saiu de Nova Soure porque queria que seus filhos estudassem e se formassem, e lá, naquela época, não via possibilidades. O seu sonho foi realizado, porque todos nós pudemos estudar e, de seus nove filhos, uma meia irmã, mais velha, por quem tenho grande carinho e admiração e oito do casal, quatro seguiram carreira acadêmica.


Pesquisando sobre Monte Alegre, encontrei esta comunidade do Orkut:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=31705667&tid=2529954288960466860