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segunda-feira, 7 de julho de 2025

MONÓLOGOS EM NOITES DE SAUDADES

 

            Quem é essa mulher que lembra, pensa e escreve reminiscências do passado? Qual o seu nome? Que importa? Sou Eu... Maria, nome comum a tantas mulheres. Nome que diz muito de mulher que já foi menina e jovem, já viveu muitos momentos, muitas vidas em uma só. Já assumiu tantas personalidades que se confunde nelas todas. 

            A noite caminha, avançam as horas, o silêncio se faz mais denso a cada minuto, luzes nas janelas em derredor que se apagam pouco a pouco, uma brisa quente entra pela janela e ela, a sós com seus consigos, retorna seu pensamento para as reminiscências do passado. São fatos e cenas que perambulam pela sua memória afetiva fazendo-a refletir sobre o quanto esse passado interferiu no seu viver de agora. O quanto influenciou no que hoje ela é, sente, deseja, sonha e faz. E Maria tece sua narrativa monocoloquial, numa conversa íntima e confidente, revelando a si mesma o seu olhar sobre seu viver de outrora. Interpreta sua vida, suas decisões, suas incertezas e suas esperanças, reescrevendo no cadinho da alma fragmentos de sua história. 

            Ela reflete sobre o turbilhão de lembranças e de sentimentos que retornam insistentes, que renascem como fênix, e conjectura: “estarei envelhecendo demais, a ponto de preencher minha solidão com esta volta ao passado? Mas, que solidão é esta, que não me tortura, que me enche de prazer, que me complementa fazendo-me entrar em mim tão densamente, que descubro muitas mulheres que se sintetizam, quem sabe, nesta que sou agora?

            E eu pergunto a Maria: seria possível esta síntese? Redescobrindo-se multidimensional, multirreferencial, como faz para ser, sendo tantas outras que gritam dentro de si? E Maria diz de si para consigo, para que, ouvindo-se, possa situar-se na sua complexidade de ser em constante construtividade: “este movimento não é somente construção, mas a dinâmica que faz a síntese das diferentes dimensões e multirreferências que definem o que sou, como sou e como fui ao longo da vida me constituindo em um ser que hoje olha-se, vê-se, interpreta-se, julga-se, analisa-se redescobrindo-se a cada reflexão”. 

            E foi assim que Maria situou o início desta sua narrativa de si em um dos momentos mais importantes, que ela guardou no silêncio de seu aconchego, escondido ciumentamente de todos os olhares e indagações da curiosidade impertinente. Existe muita coisa na vida que só revelamos quando uma decisão interior nos autoriza. E no calor desta revelação, tantas vezes tardia, surge o grande momento do ver e interpretar a si mesmo com novo olhar, de outra perspectiva, como numa teia, cujos fios se entrelaçam criando laços que se fortalecem e se recriam, em um vendo-se para compreender-se.

            E Maria escolheu uma parte de si que fala de sentimentos que nunca foram resolvidos, mas que fizeram parte da sua formação, que foram frutos de decisões que ela tomou sob influências outras que tinham grande poder sobre ela. Uma parte de sua vida a que somente ela tinha acesso direto e que criou forte elo entre todos os acontecimentos de sua vida. E que hoje acaricia seus momentos de solidão com doces e ternas recordações.

 

RECORDAÇÃO DA MENINICE - O encontro

 

            Num dia muito distante de agora, de pés descalços, com vestido de chita estampada à moda da época, lá pelos idos de 1955, aproximadamente, adentrei a cozinha da grande casa de uma cidadezinha do interior da Bahia e avistei do outro lado do recinto, apoiado no portal que dava para o quintal, alguém que, apenas com um olhar de ternura roubara meu coração. Ele disse sorrindo: olá! E eu respondi com outro olá, emocionada com o seu jeito delicado, com o seu porte elegante. Já tínhamos trocado olhares furtivos, eu timidamente e ele senhor de si, galante, até divertindo-se com meu embaraço. 

            Naquele momento, estabeleceu-se entre nós uma cumplicidade silenciosa, um acordo de corações, de almas afins que se prometeram sem ao menos se tocarem, acariciando-se com a força do olhar. Compreendi o quanto podemos sentir, amar e sonhar na meninice. Um sentimento puro e reconfortante nasceu entre nós. E, ao mesmo tempo que impregnava meus sentimentos, de amor por aquele menino lindo e travesso, recolhia-me na vergonha de demonstrar os anseios que afloravam de meu pensar apaixonado. Uma paixão de criança, tão forte quanto introspectiva, contrastes de um coração dominado pela timidez. Quem disse que criança não ama, não deseja o aconchego da pessoa amada? Apenas reprime o que sente pela censura dos adultos que incutem vergonha e medo nos atos mais puros do amor entre almas que se encontram, se reencontram e se reconhecem.

            Aquele sentimento tão puro contentava-se com as trocas de olhares ingênuos, com as brincadeiras de finais de tarde no grande quintal que circundava a antiga casa de seus pais, dos meus ou de seus avós. As famílias eram amigas e se visitavam periodicamente, principalmente nos finais de semana. Enquanto os adultos conversavam sobre negócios, problemas familiares, preocupações cotidianas, a tagarelice infantil dava conta de brincadeiras as mais diversas, de sentimentos plenos e inconfessáveis para os adultos. Quem, naquele tempo compreenderia sentimentos tão puros e gentis, entre duas crianças que se amavam apenas com a força do olhar?

            Como pintura indelével, lembrança querida, aqueles momentos se fizeram inesquecíveis, fragmentos de felicidade, de momentos que o tempo guardou na minha memória para sempre e hoje acaricia meus pensamentos; faz-me amar novamente como outrora, faz-me desejar outra vez sentir o amor como no tempo da meninice. Porém, o objeto de meu amor não mais se encontra neste mundo, partiu para a nossa pátria de origem, muito, muito cedo, levando para outras paragens a sua juventude linda, deixando-me para sempre com uma doce saudade que, a cada momento, nestes meus dias de agora, tinge-se mais e mais daquela ternura antiga, daquele doce sonho infantil.

            Até hoje não consigo compreender porque Deus, como dizem todos, o levou tão cedo desta vida, para tão longe de mim e de todos que também o amavam e amam ainda. Oh, Deus, o que sois vós, que tendes tanto poder sobre nós? Jamais me respondestes... Não sei... Sinto-vos como essência do universo, mas não sei dizer o que sois. Sinto ainda, que não quisestes levar o meu amado para um desconhecido tão longe... Que não queríeis dispor das nossas vidas assim. Sinto que, movidos por desejos e crenças, criamos os paradoxos de nossas vidas, escolhemos os nossos rumos, sob o vosso “olhar” compassivo, que sabe respeitar as nossas decisões. Não o levaste de mim... Ele fez suas escolhas, que motivaram sua partida, que separou o nosso encontro que o destino urdiu na sua trama, em algum lugar do universo, em algum momento de um passado remoto.

            Maria continuou no seu monólogo, perambulando por outras lembranças e reviu a menina travessa que não apenas cultivava sonhos de amor, mas que também brincava à moda de sua época. Lembrou de suas brincadeiras com seus irmãos, de sua escola tão sem atrativos, das traquinices que deixavam sua mãe furiosa. Lembrou de suas bonecas de pano, brinquedo de menina, mas para ela, muito monótono, porque as bonecas não falavam, não comiam, não sujavam as roupas, não se moviam, não sorriam. Por mais que as provocasse, elas continuavam mudas, paradas, incomunicáveis e isso incomodava muito a Maria. Ela era inquieta, gostava de movimento e, por isso era tida como rebelde. Contudo, Maria só queria ser feliz.

 

Os folguedos e as obrigações

 

            Eu fui tantas pessoas, eu fiz tanta coisa nesta mesma vida, em tempos e momentos diversos. Na escola eu era uma pessoa, tinha que ser séria, silenciosa, estudiosa, contida... Na verdade, eu não era eu, porque na escola deveria ser o que a minha professora queria que eu fosse e ficava de castigo quase todos os dias porque eu não conseguia ser o que ela queria, por mais que tentasse. E eu tentava, não porque achava que ela estava certa, mas porque tinha muito medo dela, de seu olhar, de sua dureza, de sua altivez fria. Em casa, tinha que ser o que os adultos queriam: educada, obediente, ajuizada, um primor de menina.

            Desse conflito nasceu uma pessoa tímida e medrosa de um lado, quando estava na escola e diante de adultos e, de outro, uma menina rebelde, que fugia dos adultos para misturar-se com meninos e meninas na rua, que brincava brincadeiras de meninas e de meninos. Havia bem nítida essa separação. Menina deveria brincar de bonecas, de dona de casa, de professora e, no máximo na porta de casa, com brincadeiras de menina, ora. Meninos poderiam brincar de futebol, de bolas de gudes, perambular pela cidade, pelos arredores.

            Entretanto, mesmo com tanta separação, meninos e meninas se juntavam para as traquinagens longe dos pais. Se depois ficasse de castigo, já tínhamos brincado, nos divertido, já tínhamos tido nossos momentos de felicidade. Era assim que nós, meninas, construíamos as nossas horas de liberdade roubada. E eu brinquei muito com os meninos os jogos de bola de gude, apostando corridas e até como juíza de luta livre entre meninos. Eu me divertia e saia da monotonia da obediência vigiada. 

            A pequena cidadezinha não oferecia perigos como hoje, os ladrões eram muito raros. Portas e janelas das casas ficavam abertas até a noite, fechando-se só quando todos se recolhiam para dormir, as ruas eram tranquilas... Carros? Para quê? Não havia necessidade. E eram tão caros que somente os poucos ricos do lugar podiam tê-los mais por ostentação e luxo, do que para uso de tão pouca serventia. A cidade era um lugarejo com ruas curtas e tranquilas, muito fácil e divertido percorrê-las a pé. Pensando nos padrões de hoje, era uma vida tranquila, bizarra, que tinha seu valor social e familiar. 

            O domingo era um dia muito especial. Pela manhã, a tradicional missa na igreja da pequena praça principal. Os meninos e as meninas eram divididos em duas ordens: quem tinha feito primeira comunhão podia e devia se confessar, no confessionário, e tomar a hóstia, comungar, como se dizia; quem não tinha feito primeira comunhão, ficava ao lado dos pais só presenciando e se entediando. Meu Deus, a gente não conseguia assimilar tanta informação que não era contemplada pelo nosso raciocínio. Ninguém explicava de modo coerente nem crenças nem costumes.

            Vejam só: a gente se ajoelhava no confessionário, olhando por aquela janelinha de tirinhas de madeira trançada! E o padre, muito convicto de suas funções de representante divino perguntava: quais são seus pecados? A gente não tinha qualidades, só pecados... E eu dizia, toda contrita: padre, eu xinguei meus irmãos, fiquei com raiva de minha professora porque ela me deu bolo de palmatória e me botou de joelhos no milho. Fiquei com raiva de minha mãe porque ela me bateu, peguei doce de leite escondido, fugi para brincar na rua com os meninos. Céus, quantos pecados! E o padre dizia: você vai rezar 50 Padre Nosso e 50 Ave Maria. Eu ia para a fila da hóstia, toda contrita porque ia receber a Jesus, como diziam. 

            Terminada a missa, voltávamos para casa e eu esquecia do veredito do padre e continuava minha vida de menina travessa, até o domingo seguinte, quando tudo se repetia. Minha mãe ia para a cozinha preparar o frango a molho pardo, comida tradicional de domingo. Meu pai sentava-se à cabeceira da grande mesa de refeições lendo o jornal, meus irmãos iam brincar na rua e eu ficava na cozinha lavando pratos. Eu achava aquela divisão tão injusta que, vez ou outra, fugia para brincar com os meninos, mesmo que meu ato culminasse em castigo, que, depois da brincadeira dava até gosto, nem prato lavava mais, estava de castigo, ora! O castigo era ficar sentada na cadeira o tempo estipulado, que não era pouco, ou ficar presa na despensa, contanto as sombras do telhado na parede. De tanto olhar e contar aquelas sombras, adormecia, até ser chamada novamente para lavar pratos e talheres. Apesar de tudo, nenhum prazer era mais prazeroso do que desobedecer. De castigo depois do prazer nem sentia tanto, porque dormia e sonhava com a liberdade, acordava com mais vontade de desobedecer de novo e ser feliz.

            A tarde do domingo, depois do descanso do almoço, começava a sessão de banhos para visitar amigos e parentes ou receber a visita deles em nossa casa. A noite a brincadeira em frente de casa até as nove horas. Nada mais se tinha para fazer no domingo na minha cidadezinha.