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sábado, 22 de outubro de 2022

Atendimento Psicoterapêutico

 Psicóloga, CRP - 03/23537

Contato pelo e-mail: lourdesoreis@gmail.com

Contos

UMA LINDA CANÇÃO DE AMOR[*]

 

Maria de Lourdes O. Reis da Silva[†]

 

                  Era uma vez, uma menina que vivia com sua mãe, seu pai e seus irmãos, numa vila perto das montanhas. Ela era a filha mais velha da família, gostava muito de brincar pelas redondezas e de visitar sua avó, que morava muito distante. A mãe da menina não gostava que ela saísse de casa. Tinha medo de que ela se perdesse pela floresta e que encontrasse algum animal feroz e a devorasse. Falava sempre: - menina levada da breca, não sabes te defender dos perigos que rondam a floresta.

A menina dava de ombros e saía a cantarolar. Achava a mãe boba e presunçosa. Além disso, era muito esperta e sempre conseguia sair com a desculpa de levar para a vovó os seus doces preferidos. A boa velhinha era carinhosa com a neta e bem relacionada nas redondezas, o que fazia com que a menina se sentisse mais segura. Contava com a compreensão e a cumplicidade de seu pai, que a amava muito. Mas quando ele não queria contrariar a mulher, dizia: se tua mãe deixar, eu também deixo. E nesses momentos, ela ficava achando que seu pai não tinha era coragem de assumir as suas opiniões. Um dia, muito decidida, encheu uma cesta de doces e de tudo que a vovó gostava e saiu ouvindo a contragosto, as recomendações de sua mãe, que, muito furiosa, dizia: sei que um dia ainda vais passar mal com tanta teimosia.

A menina seguiu com o cesto colhendo lindas flores silvestres, admirando a paisagem  e cantando alegremente. Cantava e cumprimentava os animais. De repente, começou a chover e um jovem que ia passando, ofereceu-lhe abrigo numa cabana abandonada. A menina achou-o muito educado e bonito, e aceitou a sua ajuda. Ficaram conversando na cabana, e o rapaz, muito gentil, ofereceu-se para acompanhá-la quando a chuva passasse, pois conhecia tudo por ali.

- Conheces também a minha vovó? - Conheço, menina, passo por lá todos os dias, para entregar frutas e verduras, bem fresquinhas! Quando a chuva passou, ele a levou até bem perto da casa de sua avó e se despediu dela, com um sorriso matreiro.

A menina continuou seu caminho mais alegre e suspirando de emoção. A floresta agora parecia-lhe muito mais clara e bonita. Os raios de sol batendo em seu rosto brilhavam mais que antes. Saltitante, chegou à casa da vovó. Bateu na porta, mas o seu coraçãozinho batia mais forte ainda. A vovó não respondia aos seus apelos. Será que ela saiu? Pensou a menina.

O silêncio foi quebrado por uma voz rouca, que lhe lembrava outra voz, convidando-a a entrar pela janela. Ao chegar no quarto da vovó, tomou um grande susto, porque quem estava lá, deitado na cama, com aquele sorriso matreiro, era o rapaz que lhe levara para passar a chuva na cabana abandonada, agora com olhos, nariz e boca de lobo. Ela colocou a cesta no chão e perguntou muito indignada:

- Onde está a minha vovó? E porque estás deitado na cama dela nessa folga toda? - Ela saiu, menina, e pediu-me que te esperasse. - Enganaste-me, lobo maldoso, quero minha vovó! Eu, lobo maldoso? Como podes chamar-me assim? Vem cá, menina!

E a menina saiu correndo e gritando, assustada com aquela situação. Ficou com muito medo do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Encontrou um caçador que por ali passava e lhe contou seu infortúnio.

- Moço, ajude-me, por favor, um rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, deu sumiço na minha vovozinha, se deitou na cama dela e ficou a me esperar, estou muito assustada. O caçador entrou na casa, de espingarda em punho, e agora quem ficou assustado foi o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Seu sorriso matreiro virou um susto só. O caçador amarrou o rapaz, que de tanto medo, não tinha mais olhos, nariz e boca de lobo. Soltou a vovó da menina que estava presa no porão e levou o rapaz algemado para a cadeia.

A menina abraçou a vovó, lanchou com ela e voltou para sua casa. E daquele dia em diante, passou a viver muito triste porque só pensava no rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Não mais cantava, não brincava com suas amigas. Só fazia conversar com as flores e com os passarinhos. Só a eles ela contava o seu segredo, a mais ninguém. Um dia, ela se escondeu na sombra de uma árvore e ficou chorando baixinho. Sentia muita pena do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, preso naquela cadeia, sozinho e abandonado. Ela começava a achar que o castigo que ele recebera fora muito severo e já estava durando muito. Os passarinhos lhe aconselharam a procurar ajuda para tirar o rapaz da cadeia. A menina teve uma idéia e cochichou no ouvido do passarinho amarelo. 

- Passarinho, passarinho do meu coração, acho que podes me ajudar. És tão bom e gentil, ninguém vai te expulsar se apareceres na janela da cadeia. Poderás verificar como está o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Poderás levar-lhe um recado meu. O que achas? - Excelente idéia, minha menina, tão excelente, que já brilham os teus olhinhos! E o passarinho amarelo saiu cantarolando a sua mais linda canção. Chegando lá, pousou no parapeito da janela e viu o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo sentado no chão com as mãos no rosto. Parecia muito triste. Passarinho amarelo começou a cantar para ele, que levantou a cabeça e se alegrou. Quando passarinho amarelo terminou a linda canção, o rapaz perguntou: 

- que queres de mim, passarinho amarelo? Acaso serás capaz de arrancar-me desta tão grande tristeza? - Fala, ó belo rapaz de olhos, nariz e boca de lobo! Como poderei arrancar-te desta tão grande tristeza? - Vai, passarinho amarelo, cantar na janela de minha amada. Canta a mais linda canção de amor que conheceres e ficarei feliz. 

Passarinho amarelo voou, voou e pousou na janela da menina. Era noite e ela já dormia. De repente, como se fosse num sonho, a menina ouviu uma linda canção de amor. Levantou-se, foi até a janela, e lá estava passarinho amarelo cantando uma linda canção de amor. A menina ouviu encantada e quando passarinho amarelo terminou, ela perguntou:

- quem mandou para mim, tão bela canção de amor passarinho amarelo? - Menininha tristonha, alegra teu coração, porque foi o teu belo jovem de olhos, nariz e boca de lobo quem te enviou esta linda canção de amor. 

- Passarinho amarelo, volta e diz ao meu amado, que tudo farei para tirá-lo daquela prisão, mesmo que para isto, eu jamais possa passear pelos campos floridos, nem sentir os raios do sol queimando a minha pele, nem colher as flores perfumadas dos jardins da natureza. Passarinho amarelo voltou e viu o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo olhando tristemente o céu através das grades da prisão. - Meu rapaz, cantei para tua amada, uma bela canção de amor e ela ficou feliz. - Meu bom e gentil passarinho amarelo, canta todos os dias uma canção de amor para minha amada. E ficará feliz meu pensamento. A menina contou tudo para uma amiga que compreendeu a sua dor e procurou a sua vovó. Conversando com o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo na prisão a vovó se emocionou e pediu ao guarda que o soltasse. O guarda se comoveu com a história que a vovó da menina lhe contou e soltou o rapaz.

A menina ficou muito feliz quando passarinho amarelo lhe deu a notícia. Arrumou uma linda cesta de doces deliciosos, nem ligou para as reclamações de sua mãe que gritava furiosa, e saiu pela floresta cantarolando. Quando passava perto do rio, avistou o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo cantando uma linda canção de amor. Passarinho amarelo cantava com ele e morria de amores pela menininha, mas ela não entendia.

- Como pode passarinho amarelo morrer de amores por uma menininha? Tão belo e gentil, como pode ter olhos para uma menininha? Só devo pensar no rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Ele, sim, pode morrer de amores por uma menininha.

Foram os três cantarolando uma linda canção de amor levar os doces e as flores para a vovó da menina, que ficou muito feliz. O caçador que ia passando, foi convidado para participar da festa. E daquele dia em diante, todas as noites, passarinho amarelo e o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, cantavam uma linda canção de amor na janela da menina. 

Até que um dia, o pai, a mãe da menina, e todos, entenderam que não podiam mais afastá-la do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Eles se casaram, tiveram filhos e não viveram felizes para sempre. Passarinho amarelo despediu-se e nunca mais voltou. Mas as suas canções de amor, o seu olhar cheio de ternura, o seu sorriso, ficaram no pensamento da menina, que nunca mais o esqueceu.



[*] História inspirada no conto “Chapeuzinho Vermelho” e contextualizada para a época atual. 

[†] Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Pedagoga pela Faculdade de Educação da Bahia, Psicopedagoga pela Universidade Católica de Salvador. Estudante do curso de Psicologia pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. Estudante do curso de Arteterapia pelo Instituto Junguiano da Bahia. Professora universitária.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

SETE ANOS DEPOIS

Familiares, amigos, colegas, companheiros de jornada evolutiva.


Hoje, 21 de janeiro de 2020, estou reiniciando uma itinerância que estava interrompida, mas não esquecida. É que nas turbulências aventureiras, na busca de novas rotas, de outros caminhos, ainda que sejam atalhos que retornam no vai e vem de muitas esquinas, guardamos alguma experiência para depois. Lendo e relendo os textos que, com tanto desvelo foram postados neste Blog, amenizei muitas saudades, recordei reminiscências de um tempo que minha memória guardou e marcou a minha jornada nesta vida. 

Aos 76 anos desde quando aqui aportei para novas experiências, busco ser feliz, realizar sonhos e peripécias, ressignificar conceitos, crenças e escolhas. E assim, novas descobertas tenho feito para ser feliz, ainda que momentos difíceis surjam nos portais e nos umbrais desta vida em constante transição.

Este período foi de grandes realizações para mim, porque retomei os estudos, produzi academicamente, publiquei e tracei novos caminhos encaminhando-me para a área da Psicologia, um dos sonhos acalentados. Estou atuando como Arteterapeuta, terminarei o curso de Psicologia em junho deste ano. Encerrei minha itinerância como professora em dezembro de 2018, completando 55 anos de docência, na rede pública e particular de ensino. Publiquei um livro em 2019, Memórias Arquetípicas: confissões, sonhos e vivências, e continuo escrevendo.

Deixo neste momento, uma mensagem de esperança, simbolizada pelos momentos de decisão de uma vida em perene vir a ser.

CAMINHANTE

                                        Lourdes Reis

Algo em mim borbulha, inquieta-se, procura...
Sente uma vontade plena de reencontros, 
Mais uma vez, numa viagem sem fim,
Pelas estradas por onde passam caminhos.
Aqueles que pela vida passam, convidam,
Esperam olhando para trás, sem deter-se.

Seguindo eu vou, desvendando, descortinando,
Recomeçando em busca do sem fim...
Levam-me os pés incansáveis,
Conduzem-me os pensamentos e os desejos,
Amparam-me a coragem e a ousadia
Que nunca reprimem o meu querer...

E aonde quer que eu vá, onde quer que eu chegue,
Sempre haverá um novo caminhar,
Uma nova miragem a perseguir e conquistar,
Um novo ser a despertar no recomeço,
Na dor de uma saudade, na fé de uma nova conquista,
No renascer de uma esperança.

Este poema está no meu novo livro que será publicado a partir de julho de 2020.

sábado, 4 de maio de 2013

Meus comigos... de Ti... Contigo...

Recordações... O que são?... Neste caso de mim, são revisões que reconfortam o meu viver... Olhar para o passado com a perspectiva de remarcar momentos importantes que definiram o meu jeito de ser, faz-me compreender o que de mim fez o que sou hoje.

Os meus tempos de ginásio foram aqueles que modelaram a menina moça, estudante e quase mulher, que sufocava os anseios de uma juventude marcada pelas proibições e pelos preconceitos. Naquele tempo eu me sentia solitária por não me fazer compreender pelos adultos que decidiam sobre minha vida. Depois, quando mulher verdadeiramente, me senti solitária por não me ter sido permitido vivenciar a minha mais preciosa escolha: o amor da criança que viu o seu "príncipe" e ouviu alguém com autoridade suficiente dizer que não poderia, que era proibido! Oh! Céus!... Aceitei... Aceitamos... Silenciamos... sublimando tudo em terna amizade, na solicitude inevitável de quem teve como única alternativa obedecer... Sufoquei? Não... Guardei no mais recôndito de mim, um sentimento gigante... guardei e escondi de olhares e percepções indiscretas e inconsequentes o meu mais preciso bem: o amor... a ternura... o doce encantamento que dois olhares sentiam e nele se faziam compreender.

Naquele tempo eu não sabia que futuro teria a minha Fênix... se um dia Ela despertaria... Hoje eu sei... alimentei-a com tanto carinho, que hoje Ela reina em minha vida, liberta de todas as frustrações do passado. Hoje ninguém tem poder sobre Ela! O amor venceu! Sobreviveu além desta vida e, para quem acredita em vidas futuras porque sabe, sobreviverá para sempre, pela eternidade... Esta verdade está dentro de mim, ninguém a compreende além de mim... Não sinto mais solidão, aquela que senti em todos os anos de minha vida em que vivenciei com pessoas que busquei amar... que amei... passageiramente... sem ternura... por uma necessidade de substituir algo em mim que me nutria e que não estava comigo objetivamente, mas no meu mais íntimo de mim. E, sorrateiramente... delicadamente... ternamente... o retorno do sonho alimenta o meu viver e me faz promessas... Aquelas que o tempo não apagou... que viverão para sempre... aqui, agora e em algum lugar do futuro...

Sim, porque a minha Fênix alçou voo para o infinito, mergulhou no mar imenso da eternidade, deixando-me aqui, descontente e solitária, buscando os acordes de seu Amor que vibram na ternura do vir a Ser de nós Dois.

A Ti dedico... De Camões

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida descontente, 
Repousa lá no Céu eternamente, 
E viva eu cá na terra sempre triste. 


Se lá no assento Etéreo, onde subiste, 
Memória desta vida se consente, 
Não te esqueças daquele amor ardente, 
Que já nos olhos meus tão puro viste. 

E se vires que pode merecer-te 
Alguma cousa a dor que me ficou 
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, 

Roga a Deus, que teus anos encurtou, 
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, 
Quão cedo de meus olhos te levou.


Dedico este poema a alguém que desta vida partiu há muitos anos, deixando uma saudade imensa no meu coração de menina e uma esperança que se concretizará em algum lugar do universo, em algum momento do futuro. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

FRAGMENTOS DE VIDA E FORMAÇÃO XIV



Minha turma do Ginásio - Farda com saia de prega e blusa branca. As tiras azuis na gola indicavam a série que cursávamos. Estas fotos foram tiradas na terceira série. Era uma mão de obra, todos os dias, chegar em casa, arrumar a saia em baixo do colchão, para conservar o pregueado, tinha que ficar impecável. A blusa tinha que ser muito branca, não podia ficar encardida.

A turma era só de moças? Claro que não... Tinha rapazes também. Lembro do Antonio Peixinho, irmão de Terezinha, do Josafá - o gênio da turma, do Ezequiel - o CDF, do Rubem, do João, do Darlan etc. Mas via de regra, só nos misturávamos dentro da sala, durante as aulas. Nos outros momentos era nítida a separação entre luluzinhas e bolinas. Quando éramos vistas conversando com um dos rapazes, pensavam logo que era namoro.

Em 1956, cursava a segunda série ginasial, com 13 anos, no calor da adolescência, com a mente povoada de turbulências, indagações, curiosidades... Sentimentos apaixonados... A vivenciar tudo isto em um clima de autoritarismo pedagógico e familiar. Os professores, cada um com a sua personalidade e o seu jeito de ser, desenvolvia o seu trabalho primando pelos seus princípios. Enquanto alguns demonstravam maior capacidade de compreensão para com a juventude, como as professoras Astrogilda – de Português, a professora Evoá – de Ciências e até mesmo o Padre Demócrito – de Latim; outros eram mais severos, como a professora Marília – de História, o professor Valdir Cerqueira – de Matemática e, especialmente a professora Aydil, que, além de professora de Desenho, era também a Diretora do Ginásio e administrava com rigidez exagerada.

Um dia eu estava a filar aula com duas colegas, Suzete e Zeza. Fomos conversar na Escola Normal, que ficava bem perto do Ginásio, na mesma rua. O professor Valdir Cerqueira apareceu, nos cumprimentou, deu uma rizadinha zombeteira para nós e seguiu. Falei: “precisamos voltar, porque ele vai direto contar para a professora Aydil que nos viu filando aula”. Dito e certo. Ao chegar no Ginásio, já fomos logo encaminhadas para a sala da diretoria. Encontramos dona Aydil, como a chamávamos, possessa, destilando raiva por todos os poros.

Ela nos colocou de pé na sua frente, alinhadas, e começou o interrogatório. A pergunta foi, para todas: “porque estavam filando aula?”. Zeza e Suzete, com voz trêmula, apresentaram uma desculpa qualquer: que tinham chegado atrasadas, que não dera tempo para alcançar a primeira aula e estavam esperando o horário da aula seguinte. Como eu permanecia calada, ela repetiu para mim a pergunta: “e a senhorita, por que estava filando aula?”. Com o meu habitual atrevimento, se considerarmos os padrões da época, em que não tínhamos o direito de ter ou de expressar vontade própria, respondi: “porque quis”. Ela, mais indignada ainda, repetiu a pergunta a vociferar: “diga a verdade, por que estava filando aula?”. Repeti a resposta: “porque quis, não tive outro motivo, estou falando a verdade”.

Ela, totalmente indignada, liberou minhas colegas para assistir as próximas aulas, aceitando as suas explicações e eu permaneci sentada, de castigo e esperando outro veredicto. A secretária foi chamada e solicitada a bater (termo usado na época para digitação em máquinas de datilografia – porque era mesmo o bate-bate nas teclas que fazia surgir a escrita) o texto de minha suspensão por dois dias. Naquele momento quem ficou indignada fui eu, porque falei a verdade e mais uma vez constatei que nós, alunas, não tínhamos vontade nem éramos respeitadas nas nossas decisões e nem mesmo quando falávamos a verdade. Nem um conselho, nem um argumento para demonstrar a importância de participar das aulas, apenas a arrogância e o autoritarismo. Naquele momento odiei aquela mulher, pelo que considerei uma arrogância sem limites.

Eu já não gostava dela, porque um dia, na sua aula de desenho, quando ela estava ensinando como desenhar com a base quadriculada, ao passar pela minha carteira e verificar que eu começara a esboçar um desenho a partir de uma foto de Marta Rocha, que fora Miss Brasil, ela, com toda a sua arrogância, disse humilhando-me deliberadamente: “quem é você para achar que pode desenhar Marta Rocha? Por acaso se sente capaz de passar para seu desenho toda a beleza dela?”. Não respondi, olhei-a profundamente com muita raiva e comecei a riscar o papel até destruir tudo que já tinha feito. Já tinha desenhado o corpo e ia começar a desenhar o rosto. Deste dia em diante, desisti de desenhar e, na minha mente de menina, ficou um trauma muito forte. Só voltei a desenhar quando adulta e resolvi superar o trauma, descobrindo que tinha talento e produzindo bonitos quadros, dedicando-me principalmente a pintar figuras humanas a partir de fotos.

Ao chegar em casa com o comunicado da suspensão, a reação de minha mãe foi a mesma da professora. Autoritária e violenta. Tomei uma surra de cinto de couro e fiquei de castigo, presa na despensa o restante do dia, até meu pai chegar a noite para jantar. Ao encontrar-me chorando, perguntou-me o que acontecera e eu fiz para ele a narrativa de tudo. Terminei dizendo: “o senhor sempre me diz que tenho que falar a verdade, sempre. Minhas amigas mentiram, foram liberadas para assistir as aulas e eu, que falei a verdade, recebi uma suspensão de dois dias, gritos, uma surra e fiquei presa na despensa escura”. Ele disse, confortando-me:

“Biluzinha, como me chamava carinhosamente, fale sempre a verdade, custe o que custar e você será sempre uma pessoa respeitada”. Não entendi o seu raciocínio porque eu fora muito desrespeitada pela professora e por minha mãe! Ele então procurou explicar: “nunca desista de falar a verdade porque existem pessoas assim, como sua mãe e sua professora, vai descobrir que muitas pessoas são diferentes, lhe ouvirão e valorizarão o seu modo de ser. Seja sempre honesta e verdadeira e nunca se arrependerá”.

Olhei para ele, olhos nos olhos e compreendi o que ele queria dizer. Eu estava diante dele naquele momento, uma pessoa diferente, que sabia enxergar o valor das pessoas, que foi capaz de me confortar, de me compreender e de ouvir as reclamações de minha mãe que se voltou contra ele por me tratar com respeito e me orientar.

Meu pai era assim. Uma pessoa boa, carinhosa. Ficava nervoso com a nossa gritaria em casa, com as dificuldades que enfrentava para nos criar, mas nunca teve coragem de bater em um filho. Quando se zangava, corria atrás de nós gritando, mas nunca batia... Paulinho, sempre fora o mais danado, o mais desobediente, o mais implicante, até na hora do almoço. Ele brigava com Paulinho, corria atrás dele, mas quando chegava perto com a intenção de dar um tabefe, a sua mão parava no ar, sem coragem de bater. Nós, os irmãos, achávamos muita graça desse episódio e falávamos para ele: “é por isso que ele desobedece, o senhor não tem coragem de bater...”. Ele saia e tudo terminava em risos.

COMENTÁRIO


Pode parecer estranho um comentário de mim para comigo. Entretanto, o que tenho a dizer agora sobre a minha postagem precisa valer-se do aparentemente incoerente para fazer-se compreensível.



Sobre o conceito de verdade e de honestidade de meu velho e muito amado Pai Paulo, preciso dizer que ele era e ainda o é, onde estiver, um lindo e precioso sonhador. Sim, porque ele viveu toda a sua vida no sonho sublime de que a verdade era o único caminho.

Oh! Céus! Como acreditei nisto e como segui os ensinamentos de meu Pai! Contudo, constato, na minha vida prática, que muitas vezes precisamos ocultar a verdade para sobreviver.
 E me recordo agora, neste entrelaçamento de lembranças, da muito querida professora Astrogilda Paiva Guimarães, mestra que até hoje venero como modelo de coerência e princípios de vida. Ela dizia a nós, suas alunas, que nem sempre poderíamos dizer a verdade toda. Ela, como meu pai, nos conclamava a dizer sempre a verdade, mas, haveria momentos em que não poderíamos dizer a "verdade toda".


E, quantas vezes vi-me, desconcertada e triste, vivenciando momentos em que precisei ocultar parte da verdade, não para deturpá-la, mas para preservar alguém ou mesmo para não fazer o papel de delatora. Ainda há pouco, sofri e chorei lágrimas silenciosas no meu recesso de mim, para não contar uma verdade toda, que, se dita, prejudicaria alguém e, se não dita, a prejudicada seria eu. Escolhi ser eu a prejudicada para não fazer o papel de delatora. Esperei que a outra parte falasse, mas não aconteceu. Lembrei de meu pai, de minha professora e escolhi a sabedoria de minha mestra: não dizer a verdade toda. Uma verdade que o meu comportamento, que a minha postura no dia a dia demonstrará. Com minha outra face que me lembra meu pai, direi a verdade com meus fatos de mim, que, observados dirão sobre mim verdades que são minhas.