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sábado, 25 de outubro de 2025

O SENTIDO DA DOR QUE A FALTA PROVOCA - Renascer, viver, morrer - Por Lourdes Reis

Na perspectiva do retorno à vida corporal, quem renasce é o Espírito na escala evolutiva. O que revive, desenvolve-se como ser humano e retorna à vida espiritual, Pátria de origem, é o Espírito. É, portanto, o Espírito reencarnado quem deixa saudades naqueles que o amaram ao longo desta vida. E esta saudade habita as lembranças de quem ficou aqui à espera de um possível reencontro com o objeto desse amor. Tenho refletido muito sobre as questões relacionadas com o nascer, viver e depois morrer. Questões estas, que se relacionam com os seres em evolução constante. E também, com sentimentos e situações, vivências, dores e saudades. Nesta minha vida de agora, conheci o amor em distintas dimensões. Coloquei-me diante de diferentes perspectivas como filha, irmã, mãe, esposa e companheira. Nada é tão intenso quanto a dimensão de mãe. Aquela que preenche todos os limites do amor. E, ao ver a minha filha, numa emergência do Hospital São Rafael, se despedir desta vida sorrindo e falando: “minha mãe, eu te amo, se eu morrer você vai lembrar de mim?" Eu lhe respondi, com toda a certeza no que dizia: Minha filha, você vai ficar boa e vai voltar para casa comigo. Ela sorriu e fechou os olhos. Eu falei para a enfermeira que estava ao lado da cama: ela dormiu. E a enfermeira respondeu: ela não dormiu. E saiu do quarto correndo. Retornou com uma médica que tentou intensamente reanimá-la, e não conseguiu. Somente naquele momento compreendi a resposta de Dr. Bezerra de Menezes: “Acompanharemos”, à consulta que eu tinha feito para ela, no atendimento fraterno de quinta-feira: Ele sabia que ela estava a desencarnar. E a minha gratidão a Ele será eterna. Porque minha filha não deixou o corpo físico sozinha. E isto explica também o fato de que ela estava a sorrir no momento de deixar o corpo. Aquele sorriso me acompanhará, até o momento em que reencontrarei com ela e com seu irmão lá, pelo caminho das estrelas. E esta saudade misturada com a esperança acalentará, sempre, a minha vida, e renovará as minhas crenças como Espírito reencarnado e capaz de amar e de contribuir. Ainda que a partir das mínimas possibilidades enquanto Espírito reencarnado em evolução. Jamais esquecerei aqueles a quem amo como mãe, filha, irmã, amiga... Ainda que não consiga expressar-me como deveria. Ainda que não tenha conseguido dizer o que queria deveras. E o sentido da dor que esta falta provoca, há de imprimir cada vez mais, em mim, a esperança, a fé e a certeza de um viver em busca da espiritualidade, como o verdadeiro triunfo da vida.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

MONÓLOGOS EM NOITES DE SAUDADES

 

            Quem é essa mulher que lembra, pensa e escreve reminiscências do passado? Qual o seu nome? Que importa? Sou Eu... Maria, nome comum a tantas mulheres. Nome que diz muito de mulher que já foi menina e jovem, já viveu muitos momentos, muitas vidas em uma só. Já assumiu tantas personalidades que se confunde nelas todas. 

            A noite caminha, avançam as horas, o silêncio se faz mais denso a cada minuto, luzes nas janelas em derredor que se apagam pouco a pouco, uma brisa quente entra pela janela e ela, a sós com seus consigos, retorna seu pensamento para as reminiscências do passado. São fatos e cenas que perambulam pela sua memória afetiva fazendo-a refletir sobre o quanto esse passado interferiu no seu viver de agora. O quanto influenciou no que hoje ela é, sente, deseja, sonha e faz. E Maria tece sua narrativa monocoloquial, numa conversa íntima e confidente, revelando a si mesma o seu olhar sobre seu viver de outrora. Interpreta sua vida, suas decisões, suas incertezas e suas esperanças, reescrevendo no cadinho da alma fragmentos de sua história. 

            Ela reflete sobre o turbilhão de lembranças e de sentimentos que retornam insistentes, que renascem como fênix, e conjectura: “estarei envelhecendo demais, a ponto de preencher minha solidão com esta volta ao passado? Mas, que solidão é esta, que não me tortura, que me enche de prazer, que me complementa fazendo-me entrar em mim tão densamente, que descubro muitas mulheres que se sintetizam, quem sabe, nesta que sou agora?

            E eu pergunto a Maria: seria possível esta síntese? Redescobrindo-se multidimensional, multirreferencial, como faz para ser, sendo tantas outras que gritam dentro de si? E Maria diz de si para consigo, para que, ouvindo-se, possa situar-se na sua complexidade de ser em constante construtividade: “este movimento não é somente construção, mas a dinâmica que faz a síntese das diferentes dimensões e multirreferências que definem o que sou, como sou e como fui ao longo da vida me constituindo em um ser que hoje olha-se, vê-se, interpreta-se, julga-se, analisa-se redescobrindo-se a cada reflexão”. 

            E foi assim que Maria situou o início desta sua narrativa de si em um dos momentos mais importantes, que ela guardou no silêncio de seu aconchego, escondido ciumentamente de todos os olhares e indagações da curiosidade impertinente. Existe muita coisa na vida que só revelamos quando uma decisão interior nos autoriza. E no calor desta revelação, tantas vezes tardia, surge o grande momento do ver e interpretar a si mesmo com novo olhar, de outra perspectiva, como numa teia, cujos fios se entrelaçam criando laços que se fortalecem e se recriam, em um vendo-se para compreender-se.

            E Maria escolheu uma parte de si que fala de sentimentos que nunca foram resolvidos, mas que fizeram parte da sua formação, que foram frutos de decisões que ela tomou sob influências outras que tinham grande poder sobre ela. Uma parte de sua vida a que somente ela tinha acesso direto e que criou forte elo entre todos os acontecimentos de sua vida. E que hoje acaricia seus momentos de solidão com doces e ternas recordações.

 

RECORDAÇÃO DA MENINICE - O encontro

 

            Num dia muito distante de agora, de pés descalços, com vestido de chita estampada à moda da época, lá pelos idos de 1955, aproximadamente, adentrei a cozinha da grande casa de uma cidadezinha do interior da Bahia e avistei do outro lado do recinto, apoiado no portal que dava para o quintal, alguém que, apenas com um olhar de ternura roubara meu coração. Ele disse sorrindo: olá! E eu respondi com outro olá, emocionada com o seu jeito delicado, com o seu porte elegante. Já tínhamos trocado olhares furtivos, eu timidamente e ele senhor de si, galante, até divertindo-se com meu embaraço. 

            Naquele momento, estabeleceu-se entre nós uma cumplicidade silenciosa, um acordo de corações, de almas afins que se prometeram sem ao menos se tocarem, acariciando-se com a força do olhar. Compreendi o quanto podemos sentir, amar e sonhar na meninice. Um sentimento puro e reconfortante nasceu entre nós. E, ao mesmo tempo que impregnava meus sentimentos, de amor por aquele menino lindo e travesso, recolhia-me na vergonha de demonstrar os anseios que afloravam de meu pensar apaixonado. Uma paixão de criança, tão forte quanto introspectiva, contrastes de um coração dominado pela timidez. Quem disse que criança não ama, não deseja o aconchego da pessoa amada? Apenas reprime o que sente pela censura dos adultos que incutem vergonha e medo nos atos mais puros do amor entre almas que se encontram, se reencontram e se reconhecem.

            Aquele sentimento tão puro contentava-se com as trocas de olhares ingênuos, com as brincadeiras de finais de tarde no grande quintal que circundava a antiga casa de seus pais, dos meus ou de seus avós. As famílias eram amigas e se visitavam periodicamente, principalmente nos finais de semana. Enquanto os adultos conversavam sobre negócios, problemas familiares, preocupações cotidianas, a tagarelice infantil dava conta de brincadeiras as mais diversas, de sentimentos plenos e inconfessáveis para os adultos. Quem, naquele tempo compreenderia sentimentos tão puros e gentis, entre duas crianças que se amavam apenas com a força do olhar?

            Como pintura indelével, lembrança querida, aqueles momentos se fizeram inesquecíveis, fragmentos de felicidade, de momentos que o tempo guardou na minha memória para sempre e hoje acaricia meus pensamentos; faz-me amar novamente como outrora, faz-me desejar outra vez sentir o amor como no tempo da meninice. Porém, o objeto de meu amor não mais se encontra neste mundo, partiu para a nossa pátria de origem, muito, muito cedo, levando para outras paragens a sua juventude linda, deixando-me para sempre com uma doce saudade que, a cada momento, nestes meus dias de agora, tinge-se mais e mais daquela ternura antiga, daquele doce sonho infantil.

            Até hoje não consigo compreender porque Deus, como dizem todos, o levou tão cedo desta vida, para tão longe de mim e de todos que também o amavam e amam ainda. Oh, Deus, o que sois vós, que tendes tanto poder sobre nós? Jamais me respondestes... Não sei... Sinto-vos como essência do universo, mas não sei dizer o que sois. Sinto ainda, que não quisestes levar o meu amado para um desconhecido tão longe... Que não queríeis dispor das nossas vidas assim. Sinto que, movidos por desejos e crenças, criamos os paradoxos de nossas vidas, escolhemos os nossos rumos, sob o vosso “olhar” compassivo, que sabe respeitar as nossas decisões. Não o levaste de mim... Ele fez suas escolhas, que motivaram sua partida, que separou o nosso encontro que o destino urdiu na sua trama, em algum lugar do universo, em algum momento de um passado remoto.

            Maria continuou no seu monólogo, perambulando por outras lembranças e reviu a menina travessa que não apenas cultivava sonhos de amor, mas que também brincava à moda de sua época. Lembrou de suas brincadeiras com seus irmãos, de sua escola tão sem atrativos, das traquinices que deixavam sua mãe furiosa. Lembrou de suas bonecas de pano, brinquedo de menina, mas para ela, muito monótono, porque as bonecas não falavam, não comiam, não sujavam as roupas, não se moviam, não sorriam. Por mais que as provocasse, elas continuavam mudas, paradas, incomunicáveis e isso incomodava muito a Maria. Ela era inquieta, gostava de movimento e, por isso era tida como rebelde. Contudo, Maria só queria ser feliz.

 

Os folguedos e as obrigações

 

            Eu fui tantas pessoas, eu fiz tanta coisa nesta mesma vida, em tempos e momentos diversos. Na escola eu era uma pessoa, tinha que ser séria, silenciosa, estudiosa, contida... Na verdade, eu não era eu, porque na escola deveria ser o que a minha professora queria que eu fosse e ficava de castigo quase todos os dias porque eu não conseguia ser o que ela queria, por mais que tentasse. E eu tentava, não porque achava que ela estava certa, mas porque tinha muito medo dela, de seu olhar, de sua dureza, de sua altivez fria. Em casa, tinha que ser o que os adultos queriam: educada, obediente, ajuizada, um primor de menina.

            Desse conflito nasceu uma pessoa tímida e medrosa de um lado, quando estava na escola e diante de adultos e, de outro, uma menina rebelde, que fugia dos adultos para misturar-se com meninos e meninas na rua, que brincava brincadeiras de meninas e de meninos. Havia bem nítida essa separação. Menina deveria brincar de bonecas, de dona de casa, de professora e, no máximo na porta de casa, com brincadeiras de menina, ora. Meninos poderiam brincar de futebol, de bolas de gudes, perambular pela cidade, pelos arredores.

            Entretanto, mesmo com tanta separação, meninos e meninas se juntavam para as traquinagens longe dos pais. Se depois ficasse de castigo, já tínhamos brincado, nos divertido, já tínhamos tido nossos momentos de felicidade. Era assim que nós, meninas, construíamos as nossas horas de liberdade roubada. E eu brinquei muito com os meninos os jogos de bola de gude, apostando corridas e até como juíza de luta livre entre meninos. Eu me divertia e saia da monotonia da obediência vigiada. 

            A pequena cidadezinha não oferecia perigos como hoje, os ladrões eram muito raros. Portas e janelas das casas ficavam abertas até a noite, fechando-se só quando todos se recolhiam para dormir, as ruas eram tranquilas... Carros? Para quê? Não havia necessidade. E eram tão caros que somente os poucos ricos do lugar podiam tê-los mais por ostentação e luxo, do que para uso de tão pouca serventia. A cidade era um lugarejo com ruas curtas e tranquilas, muito fácil e divertido percorrê-las a pé. Pensando nos padrões de hoje, era uma vida tranquila, bizarra, que tinha seu valor social e familiar. 

            O domingo era um dia muito especial. Pela manhã, a tradicional missa na igreja da pequena praça principal. Os meninos e as meninas eram divididos em duas ordens: quem tinha feito primeira comunhão podia e devia se confessar, no confessionário, e tomar a hóstia, comungar, como se dizia; quem não tinha feito primeira comunhão, ficava ao lado dos pais só presenciando e se entediando. Meu Deus, a gente não conseguia assimilar tanta informação que não era contemplada pelo nosso raciocínio. Ninguém explicava de modo coerente nem crenças nem costumes.

            Vejam só: a gente se ajoelhava no confessionário, olhando por aquela janelinha de tirinhas de madeira trançada! E o padre, muito convicto de suas funções de representante divino perguntava: quais são seus pecados? A gente não tinha qualidades, só pecados... E eu dizia, toda contrita: padre, eu xinguei meus irmãos, fiquei com raiva de minha professora porque ela me deu bolo de palmatória e me botou de joelhos no milho. Fiquei com raiva de minha mãe porque ela me bateu, peguei doce de leite escondido, fugi para brincar na rua com os meninos. Céus, quantos pecados! E o padre dizia: você vai rezar 50 Padre Nosso e 50 Ave Maria. Eu ia para a fila da hóstia, toda contrita porque ia receber a Jesus, como diziam. 

            Terminada a missa, voltávamos para casa e eu esquecia do veredito do padre e continuava minha vida de menina travessa, até o domingo seguinte, quando tudo se repetia. Minha mãe ia para a cozinha preparar o frango a molho pardo, comida tradicional de domingo. Meu pai sentava-se à cabeceira da grande mesa de refeições lendo o jornal, meus irmãos iam brincar na rua e eu ficava na cozinha lavando pratos. Eu achava aquela divisão tão injusta que, vez ou outra, fugia para brincar com os meninos, mesmo que meu ato culminasse em castigo, que, depois da brincadeira dava até gosto, nem prato lavava mais, estava de castigo, ora! O castigo era ficar sentada na cadeira o tempo estipulado, que não era pouco, ou ficar presa na despensa, contanto as sombras do telhado na parede. De tanto olhar e contar aquelas sombras, adormecia, até ser chamada novamente para lavar pratos e talheres. Apesar de tudo, nenhum prazer era mais prazeroso do que desobedecer. De castigo depois do prazer nem sentia tanto, porque dormia e sonhava com a liberdade, acordava com mais vontade de desobedecer de novo e ser feliz.

            A tarde do domingo, depois do descanso do almoço, começava a sessão de banhos para visitar amigos e parentes ou receber a visita deles em nossa casa. A noite a brincadeira em frente de casa até as nove horas. Nada mais se tinha para fazer no domingo na minha cidadezinha.

sábado, 22 de outubro de 2022

Atendimento Psicoterapêutico

 Psicóloga, CRP - 03/23537

Contato pelo e-mail: lourdesoreis@gmail.com

Contos

UMA LINDA CANÇÃO DE AMOR[*]

 

Maria de Lourdes O. Reis da Silva[†]

 

                  Era uma vez, uma menina que vivia com sua mãe, seu pai e seus irmãos, numa vila perto das montanhas. Ela era a filha mais velha da família, gostava muito de brincar pelas redondezas e de visitar sua avó, que morava muito distante. A mãe da menina não gostava que ela saísse de casa. Tinha medo de que ela se perdesse pela floresta e que encontrasse algum animal feroz e a devorasse. Falava sempre: - menina levada da breca, não sabes te defender dos perigos que rondam a floresta.

A menina dava de ombros e saía a cantarolar. Achava a mãe boba e presunçosa. Além disso, era muito esperta e sempre conseguia sair com a desculpa de levar para a vovó os seus doces preferidos. A boa velhinha era carinhosa com a neta e bem relacionada nas redondezas, o que fazia com que a menina se sentisse mais segura. Contava com a compreensão e a cumplicidade de seu pai, que a amava muito. Mas quando ele não queria contrariar a mulher, dizia: se tua mãe deixar, eu também deixo. E nesses momentos, ela ficava achando que seu pai não tinha era coragem de assumir as suas opiniões. Um dia, muito decidida, encheu uma cesta de doces e de tudo que a vovó gostava e saiu ouvindo a contragosto, as recomendações de sua mãe, que, muito furiosa, dizia: sei que um dia ainda vais passar mal com tanta teimosia.

A menina seguiu com o cesto colhendo lindas flores silvestres, admirando a paisagem  e cantando alegremente. Cantava e cumprimentava os animais. De repente, começou a chover e um jovem que ia passando, ofereceu-lhe abrigo numa cabana abandonada. A menina achou-o muito educado e bonito, e aceitou a sua ajuda. Ficaram conversando na cabana, e o rapaz, muito gentil, ofereceu-se para acompanhá-la quando a chuva passasse, pois conhecia tudo por ali.

- Conheces também a minha vovó? - Conheço, menina, passo por lá todos os dias, para entregar frutas e verduras, bem fresquinhas! Quando a chuva passou, ele a levou até bem perto da casa de sua avó e se despediu dela, com um sorriso matreiro.

A menina continuou seu caminho mais alegre e suspirando de emoção. A floresta agora parecia-lhe muito mais clara e bonita. Os raios de sol batendo em seu rosto brilhavam mais que antes. Saltitante, chegou à casa da vovó. Bateu na porta, mas o seu coraçãozinho batia mais forte ainda. A vovó não respondia aos seus apelos. Será que ela saiu? Pensou a menina.

O silêncio foi quebrado por uma voz rouca, que lhe lembrava outra voz, convidando-a a entrar pela janela. Ao chegar no quarto da vovó, tomou um grande susto, porque quem estava lá, deitado na cama, com aquele sorriso matreiro, era o rapaz que lhe levara para passar a chuva na cabana abandonada, agora com olhos, nariz e boca de lobo. Ela colocou a cesta no chão e perguntou muito indignada:

- Onde está a minha vovó? E porque estás deitado na cama dela nessa folga toda? - Ela saiu, menina, e pediu-me que te esperasse. - Enganaste-me, lobo maldoso, quero minha vovó! Eu, lobo maldoso? Como podes chamar-me assim? Vem cá, menina!

E a menina saiu correndo e gritando, assustada com aquela situação. Ficou com muito medo do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Encontrou um caçador que por ali passava e lhe contou seu infortúnio.

- Moço, ajude-me, por favor, um rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, deu sumiço na minha vovozinha, se deitou na cama dela e ficou a me esperar, estou muito assustada. O caçador entrou na casa, de espingarda em punho, e agora quem ficou assustado foi o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Seu sorriso matreiro virou um susto só. O caçador amarrou o rapaz, que de tanto medo, não tinha mais olhos, nariz e boca de lobo. Soltou a vovó da menina que estava presa no porão e levou o rapaz algemado para a cadeia.

A menina abraçou a vovó, lanchou com ela e voltou para sua casa. E daquele dia em diante, passou a viver muito triste porque só pensava no rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Não mais cantava, não brincava com suas amigas. Só fazia conversar com as flores e com os passarinhos. Só a eles ela contava o seu segredo, a mais ninguém. Um dia, ela se escondeu na sombra de uma árvore e ficou chorando baixinho. Sentia muita pena do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, preso naquela cadeia, sozinho e abandonado. Ela começava a achar que o castigo que ele recebera fora muito severo e já estava durando muito. Os passarinhos lhe aconselharam a procurar ajuda para tirar o rapaz da cadeia. A menina teve uma idéia e cochichou no ouvido do passarinho amarelo. 

- Passarinho, passarinho do meu coração, acho que podes me ajudar. És tão bom e gentil, ninguém vai te expulsar se apareceres na janela da cadeia. Poderás verificar como está o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Poderás levar-lhe um recado meu. O que achas? - Excelente idéia, minha menina, tão excelente, que já brilham os teus olhinhos! E o passarinho amarelo saiu cantarolando a sua mais linda canção. Chegando lá, pousou no parapeito da janela e viu o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo sentado no chão com as mãos no rosto. Parecia muito triste. Passarinho amarelo começou a cantar para ele, que levantou a cabeça e se alegrou. Quando passarinho amarelo terminou a linda canção, o rapaz perguntou: 

- que queres de mim, passarinho amarelo? Acaso serás capaz de arrancar-me desta tão grande tristeza? - Fala, ó belo rapaz de olhos, nariz e boca de lobo! Como poderei arrancar-te desta tão grande tristeza? - Vai, passarinho amarelo, cantar na janela de minha amada. Canta a mais linda canção de amor que conheceres e ficarei feliz. 

Passarinho amarelo voou, voou e pousou na janela da menina. Era noite e ela já dormia. De repente, como se fosse num sonho, a menina ouviu uma linda canção de amor. Levantou-se, foi até a janela, e lá estava passarinho amarelo cantando uma linda canção de amor. A menina ouviu encantada e quando passarinho amarelo terminou, ela perguntou:

- quem mandou para mim, tão bela canção de amor passarinho amarelo? - Menininha tristonha, alegra teu coração, porque foi o teu belo jovem de olhos, nariz e boca de lobo quem te enviou esta linda canção de amor. 

- Passarinho amarelo, volta e diz ao meu amado, que tudo farei para tirá-lo daquela prisão, mesmo que para isto, eu jamais possa passear pelos campos floridos, nem sentir os raios do sol queimando a minha pele, nem colher as flores perfumadas dos jardins da natureza. Passarinho amarelo voltou e viu o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo olhando tristemente o céu através das grades da prisão. - Meu rapaz, cantei para tua amada, uma bela canção de amor e ela ficou feliz. - Meu bom e gentil passarinho amarelo, canta todos os dias uma canção de amor para minha amada. E ficará feliz meu pensamento. A menina contou tudo para uma amiga que compreendeu a sua dor e procurou a sua vovó. Conversando com o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo na prisão a vovó se emocionou e pediu ao guarda que o soltasse. O guarda se comoveu com a história que a vovó da menina lhe contou e soltou o rapaz.

A menina ficou muito feliz quando passarinho amarelo lhe deu a notícia. Arrumou uma linda cesta de doces deliciosos, nem ligou para as reclamações de sua mãe que gritava furiosa, e saiu pela floresta cantarolando. Quando passava perto do rio, avistou o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo cantando uma linda canção de amor. Passarinho amarelo cantava com ele e morria de amores pela menininha, mas ela não entendia.

- Como pode passarinho amarelo morrer de amores por uma menininha? Tão belo e gentil, como pode ter olhos para uma menininha? Só devo pensar no rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Ele, sim, pode morrer de amores por uma menininha.

Foram os três cantarolando uma linda canção de amor levar os doces e as flores para a vovó da menina, que ficou muito feliz. O caçador que ia passando, foi convidado para participar da festa. E daquele dia em diante, todas as noites, passarinho amarelo e o rapaz de olhos, nariz e boca de lobo, cantavam uma linda canção de amor na janela da menina. 

Até que um dia, o pai, a mãe da menina, e todos, entenderam que não podiam mais afastá-la do rapaz de olhos, nariz e boca de lobo. Eles se casaram, tiveram filhos e não viveram felizes para sempre. Passarinho amarelo despediu-se e nunca mais voltou. Mas as suas canções de amor, o seu olhar cheio de ternura, o seu sorriso, ficaram no pensamento da menina, que nunca mais o esqueceu.



[*] História inspirada no conto “Chapeuzinho Vermelho” e contextualizada para a época atual. 

[†] Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Pedagoga pela Faculdade de Educação da Bahia, Psicopedagoga pela Universidade Católica de Salvador. Estudante do curso de Psicologia pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. Estudante do curso de Arteterapia pelo Instituto Junguiano da Bahia. Professora universitária.